Luiz Melodia quase deixa escorrer uma lágrima ao rever um exemplar em LP (o bom e velho vinil) de seu primeiro disco, ‘Pérola Negra’, de 1973. “Rapaz... tem o encarte também?”, pergunta, já manuseando a relíquia. “Devo ter um desses em algum lugar aqui de casa, mas sem o encarte... acho que não vejo esse encarte desde o lançamento, há 40 anos”, conta o cantor e compositor. “Olha a foto! Acho que tinha 19 anos aí. Nunca pensei em ser artista. Eu era apenas um garoto que fazia e tocava umas músicas. Queria mesmo era ser jogador de futebol. Meu sonho era jogar no Maracanã”, recorda, modesto, o autor de clássicos como ‘Estácio, Eu e Você’, ‘Estácio, Holly Estácio’, ‘Vale Quanto Pesa’ e a própria ‘Pérola Negra’, todos de sua antológica estreia.
Convidamos o músico para reescutar o álbum, que acaba de ser relançado em CD, devidamente remasterizado e com resgate da arte e créditos originais, embalado na caixa ‘Três Tons’ junto de outros dois discos seus, ‘Felino’, de 1983, e ‘Pintando o Sete’, de 1991. “Há anos não escuto o ‘Pérola Negra’ inteiro”, entusiasma-se (confira como foi a audição abaixo). “Só que vamos ter que ouvir o CD, infelizmente minha vitrola está sem agulha”, desculpa-se, exibindo, orgulhoso, também um toca-fitas funcionando e uma vasta coleção de fitas-cassete.
Com o tempo, ‘Pérola Negra’ ganhou o status de clássico. Na época, porém, um negro do Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, ter lançado um disco que não era exclusivamente de samba lhe custou um bocado de narizes torcidos dos bambas veteranos.
“Os puristas me execraram. Não estavam prontos para aquela mistura de ritmos. Tem tudo ali: jazz, blues, rock, choro e também samba”, ressalta. “Minha família não tinha dinheiro para comprar televisão. Eu ouvia todos esses ritmos em um radinho de pilha, que era a única coisa que meu pai podia comprar”.
As coisas começaram a mudar quando Gal Costa gravou, em 1971, a música ‘Pérola Negra’. “Comecei a aparecer nos jornais. Os caras lá do morro não entenderam nada quando as equipes de reportagem começaram a bater na minha porta. Os vizinhos ficaram enlouquecidos”, conta.
Quarenta anos depois, Melodia ainda olha para trás e se admira com sua criação mais famosa. “Sempre pedem as canções desse disco nos meus shows. Às vezes brinco, dizendo que não aguento mais cantá-las, mas é pura onda. Eu adoro!”, garante. “Só fico p... da vida porque outros discos meus também muito bons não são tão badalados quanto esse. Mas fico feliz que ‘Pérola Negra’, com certeza, continuará sendo ouvido com o mesmo entusiasmo daqui a 40 anos”, prevê.
CAPA TRAZ FOTO EM FERRO-VELHO DE COPACABANA
Além da riqueza musical do disco ‘Pérola Negra’, sua capa merece um capítulo à parte: uma foto de Luiz Melodia dentro de uma banheira segurando um globo terrestre sobre grãos de feijão. “Foi ideia minha. Sugeri o feijão para representar a fome. A foto foi feita em Copacabana, em um lugar que era um misto de ferro-velho e que vendia também diversas coisas antigas, na Rua Figueiredo de Magalhães”, lembra.
A contracapa traz um mosaico de diversas outras fotos, muitas feitas na mesma ocasião. “Tem eu sentado em um vaso sanitário, que tinha lá. Tem foto minha abraçado com a Suzana de Moraes, filha do Vinicius. A gente morava junto, mas não era namorico, não. Depois de um tempo li uma entrevista dela onde falava que namoraria comigo. Pô... e na época não me falou nada...”, diverte-se Melodia. “Também tem várias fotos da galera lá do Morro de São Carlos, o pessoal da favela. Hoje todos estão com filhos, muitos nem estão vivos. Toda vez que vejo essas fotos fico sensibilizado”.
O QUE VEM POR AÍ
Depois de revisitar o passado, Luiz Melodia antecipa os lançamentos futuros. “Tenho oito canções novinhas que faço questão de gravar e lançar em CD junto de outras que estão começadas e que vou terminar”, detalha. “Vou chamar a Céu para cantar comigo em uma das faixas, para retribuir o carinho que ela teve quando fez uma música especialmente para gravar comigo. Outra das canções terá a participação do meu filho Mahal, que é rapper. Vamos fazer um hip hop. Nós já gravamos juntos uma vez, a música ‘Lorena’, no meu disco ‘Retrato do Artista Quando Coisa’, e quero repetir a experiência. O Mahal faz um hip hop diferente do que se faz por aí. Ele tem uma canetada maravilhosa”, elogia, referindo-se aos versos que o filho cria.
Melodia faz questão de apresentar em primeira mão sua gravação mais recente. Não algo de sua autoria, mas a faixa ‘Como Igual’, do integrante do Titãs Sérgio Britto. O destino é o disco solo que Britto está preparando. O refrão fala de “um lugar onde todos se veem como iguais/Porque só os iguais podem ser diferentes”. Para a surpresa do próprio Melodia, o roqueiro não lhe apresentou uma pauleira típica de seu grupo. “É uma bossa nova. Não esperava isso dele”, surpreende-se. LSM (fotos André Luiz Mello)
FAIXA A FAIXA
Estácio, eu e você
O disco começa com este choro, com acompanhamento do Regional de Canhoto e a flauta de Altamiro Carrilho. “Essa versão remasterizada está ótima. Sempre achei o violão e o cavaquinho muito baixos na gravação original”.
Vale quanto pesa
Nesta, Melodia mistura marcha e mambo. “O Barão Vermelho fez uma bela regravação dessa música, que a aproximou de uma nova geração. Mas não acho que as pessoas devem buscar conhecer a obra de um artista somente quando ele é regravado. O ideal é pesquisar”.
Estácio, holly Estácio
Destaque nessa faixa para a gaita de Rildo Hora. “Essa é uma das minhas músicas que mais pedem até hoje”
Pra aquietar
Um rockão cheio de guitarras. Melodia explica o significado do verso ‘Não posso pra lá paraguaio para/Menino de cá faço o tempo parar’. “A letra original, que nem lembro mais como era, foi censurada. Achavam que tinha alguma intenção política. Era horrível quando mexiam assim na sua obra. Troquei na hora de gravar por palavras aleatórias”.
Abundantemente morte
Um blues. “Um arranjo simples, só com guitarra e violão, de Perônio Albuquerque. Ele gostava muito desse meu lado de blues e jazz. Tive a felicidade de ter alguns ótimos músicos nesse disco”
Pérola Negra
A faixa-título foi gravada, dois anos antes, por Gal Costa em seu clássico disco ‘Fa-Tal’. “Fiz inspirado por uma menina com quem eu saía quando tinha uns 18 anos. Mas eu era o segundo cara. Quando o namorado dela chegava, eu tinha que sair correndo pelos fundos”.
Magrelinha
Uma bela balada blues. “Outra inspirada pela antiga paixão”.
Farrapo humano
Nesta destaca-se a guitarra de Renato Piau. “Foi quando o conheci. Até hoje ele é meu braço direito nos palcos”.
Objeto H
Um rhythm and blues. “Muito dessas influências eu ouvia na casa de um tio, o Zezinho, que tinha uma vitrola bonita, igual a um móvel. Lembro que tinha muita coisa de Nat King Cole, minha mãe também adorava”
Forró de janeiro
Com a participação do lendário artista experimental Daminhão Experiença. “Ele era meu amigo, morava no Estácio e já gostava de fazer seus experimentos. Tocava um violão de duas cordas e fizemos shows juntos. Esta foi a primeira aparição dele em disco”.
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